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O vizinho

  • Foto do escritor: Cançado Thomé
    Cançado Thomé
  • 27 de jan. de 2019
  • 9 min de leitura

Atualizado: 20 de abr. de 2019

Até então, o sujeito era o melhor tipo de vizinho que se pode ter: simpático quando se encontra no hall, habilidoso para conversa de elevador, respeitoso com as regras de convivência. E mais que tudo: silencioso. Absolutamente silencioso. Quando entrava em casa, tinha-se a impressão que atravessava um portal para outra dimensão – nada de música, nem alta nem baixa, nenhuma TV, sem gritaria, sem batidas de salto de sapato, nunca martelou um prego, nem sequer usou liquidificador.


Morávamos, eu e ele, no vigésimo sexto andar, no lado oposto à entrada principal do prédio. Por nosso lado, caso se subisse pelo elevador social, era preciso dar umas voltas pelos corredores do andar. Então preferíamos, nós e todos os moradores que tinham apartamentos nas mesmas colunas, subir pelo elevador de serviço, que ficava quase de frente para a entrada secundária do prédio, que não tinha porteiro e era acessada através de código pessoal. Por conta do isolamento dos apartamentos, parecia que morávamos sós no andar: entrávamos e saíamos sem contato com os funcionários e quase nunca esbarrávamos com os moradores dos outros oito apartamentos.


Era um típico funcionário de repartição, já alguns quilômetros passados dos cinquenta e meio metido a intelectual: era comum vê-lo chegando em casa com sacolas de livros e revistas cabeça. Parecia ser só no mundo: solteirão e sem filhos, nunca o vi trazer namorada (nem namorado), nunca vi parentes, nem mesmo um amigo para uma sessão de dominó. Eram ele, as revistas, os livros. E o silêncio.


Então um dia, sem mais nem porque, resolveu fazer de uma vez todo o barulho que acumulara. Era algo como três da manhã e começou a tocar no último volume uma música eletrônica, do tipo que tem graves que fazem tremer os objetos e agudos frenéticos que transportam o corpo para as alturas (desde que, claro, você esteja sob efeito das substâncias apropriadas). Acordei num susto: que porra é essa?


Levantei grogue e fui à sala do apartamento, na direção de onde vinha o som. Na confusão do sono e com os ecos e reverberações que qualquer estalar faz no silêncio da madrugada, meu coração afirmava que a balbúrdia vinha de outro lugar: o vizinho era por demais silencioso para suportar aquilo. Cheguei até a varanda, para me certificar da origem do tormento – de cima, de baixo, do lado, das casas em frente? Meu coração é um tolo.


Não havia dúvida, era da casa do vizinho. As plantas de nossos apartamentos são espelhadas, ou seja, a parede da minha sala é parede da sala dele e nossas varandas ficam lado a lado. Eu não sou do tipo de bisbilhotar, não suporto quem se mete na vida alheia. Ainda assim, coloquei o corpo um pouco para fora do parapeito para espiar se havia alguma festa por trás da rede de proteção da varanda ao lado.


Para meu espanto a casa estava apagada. Não havia pessoas, não havia badalação, não havia divertimento: apenas a música insuportável e, no que entendi ser o corredor, depois da sala, lá ao fundo, um leve brilho avermelhado, como se um abajur estivesse aceso num dos quartos e uma réstia cansada de luz chegasse ali por mero acaso. Pela minha posição, corpo projetado para fora no vigésimo sexto andar, perspectiva torta e aquela rede chata atrapalhando a visão, eu não conseguia distinguir nada com precisão. Era como se o apartamento tivesse se tornado um espaço oco, sem mobília, sem paredes, sem limites – um vazio suspenso ao lado, no qual apenas o ponto vermelho de brilho afastado existia, como uma conexão.


Veio uma pessoa e se pôs à frente da luz – não era o vizinho. Foi estranho, porque pelo tamanho do sujeito, pela proporção de seu corpo, era como se estivesse há uns trinta metros de distância. Mas isso não fazia sentido: nossos apartamentos têm pouco mais que sessenta metros quadrados – a entrada do corredor de onde supostamente vinha a luz vermelha ficava a menos de cinco metros de onde eu estava. Eu via o homem apenas pela silhueta vermelha às suas costas: parecia estar nu e tinha corpo de atleta, pescoço largo, ombros imponentes, cintura fina, braços torneados, pernas firmes. Tive a impressão de que sorria, os dentes brilhando como sob efeito de luz negra.


Saí da varanda com a mente perturbada (preciso parar de tomar tanta coisa para dormir) e fui ao interfone – afinal, o que ou quem estava no apartamento do vizinho não importava. Eu queria apenas o fim da música infernal. Toquei uma, duas, três vezes antes de atentar para minha estupidez: é óbvio que não ouviriam o interfone abafado pelo pancadão.


Coloquei camiseta velha e short e fui bater lá – cabelos em balbúrdia, cara amassada: queria mesmo que percebessem que incomodavam meu sono. Toquei a campainha. Tinha som clássico de cigarra, diferente do padrão do prédio, que era de toque de sino. Percebi que nunca havia batido à porta do vizinho – eu me lembraria do som com gosto de infância. Esperei alguns instantes e nada. Toquei da segunda vez, segurando o sinal por mais tempo. De novo, sem resposta. Toquei pela terceira vez, mas então sustentando o chamado até obter resposta – ou até a campainha emudecer.


A porta se abriu e a música cessou. Foi como se o controle do som estivesse na maçaneta. A simultaneidade da abertura e do silêncio deixou-me em surpresa pelo instante que antecedeu a visão da cara do vizinho. O baixinho estava em um hobby xadrez, pantufas acolchoadas e óculos redondos de armação larga. Parecia estar com mais sono do que eu.


“Desculpe incomodar a essa hora, mas é porque a música no seu apartamento estava muito alta.”


“Imagine, quem pede desculpas sou eu por qualquer incômodo que eu possa ter causado. Mas você poderia me explicar que música.”


“Oi?”


“Sim, que música? Eu estava dormindo e não sei de que forma lhe incomodei. Então gostaria muito de entender para não repetir minha falta.” Sorria com cortesia formal, mostrando ao mesmo tempo estar com sono e estar incomodado com minha presença.


“Estava tocando até o senhor abrir a porta uma batida tecno muito alta.”


“Olha, imagino que esteja havendo um mau entendido. Eu não sei ao certo nem o que é uma batida tecno e lhe afirmo que não vinha daqui. Veja que eu nem tenho equipamento de som.” Escancarou a porta, mostrando sua sala: cadeiras abauladas em dourado envelhecido com estofado encamurçado vinho, um conjunto de poltrona imperador, pufe, mesa de canto e abajur com cúpula de vidro e lâmpada vermelha, lustre de cristal com centenas de gotas e lâmpadas imitando velas, cortinas grossas, com bandô, braçadeira, xale e gravata e uma estante com acabamentos torneados antigos, ocupando a parede inteira, cheia de livros. Nenhum sinal de equipamento de som. Nem mesmo uma caixinha compacta.


“Eu não sei como o som estava tocando, mas estou certo que vinha do seu apartamento.” Minha voz estava menos gentil.


“Que seja. Não se repetirá. Boa noite.” Bateu a porta devolvendo-me a aspereza.


Pelos dias que se sucederam, nossa relação se normalizou, quer dizer, nossa não-relação. Eu estava numa rotina intensa de fim de semestre, então saía de casa com sol nascendo e voltava quase à meia noite. Não encontrei mais o vizinho nas áreas comuns e o silêncio voltou a ser dono da nossa noite.


Mas o episódio ficou perturbando meu juízo. Não pela barulheira inesperada, nem pela luz vermelha, nem pelo homenzinho à sua frente. O que me encucou foi que tive a impressão de ver o vizinho sorrir quando me batia a porta, com o mesmo sorriso do homenzinho: meio irônico, um tanto descarado, como quem sabe mais do que você e está se divertindo às suas custas. Não conseguia ter certeza se aquilo tinha sido real, imaginação, efeito do avançado da hora e ou reação das bolinhas de dormir misturadas com o uísque da noite anterior. É fato que eu não conhecia o vizinho – nossos contatos eram no máximo superficiais. Ainda assim, aquela atitude não parecia se adequar ao sujeito.


Menos adequada foi outra madrugada, quando acordei de novo com barulheira, mas dessa vez ao invés de música, gritos. Muitos gritos, desesperados. Primeiro foi o grito de uma mulher, agudo, rasgado, seguido por pedidos de socorro: “não, pelo amor de Deus, não. Para, está doendo muito”. Outro urro. Então a voz de um homem (ou eram dois), um guincho, misturado com choro, como alguém que já se entregou ao sofrimento e nem resiste mais. E outro homem, “não, não, não, não”, dava para perceber que algo se aproximava, como um ataque iminente de um cão. E outra mulher berrando ais, mais outra pedindo socorro e antes que eu sequer acordasse direito já era um grupo grande em aflição coletiva.


Levantei e fui em passo firme bater na porta do vizinho. Mal havia saído do quarto e congelei – e se fosse um assaltante, algum tipo de psicopata roubando e maltratando convidados de uma festa? Então, afinal, o vizinho faz festas. Mas se eu batesse ia ser mais uma vítima da tortura. O que fazer?


Óbvio: chamar a polícia. Fosse lá o que estivesse acontecendo, aquilo era caso de polícia. Peguei o celular – estava descarregado. Eu não tinha fixo. Fui ao interfone pedir ajuda ao porteiro – estava mudo. O que fazer? Não dava para ignorar tanto sofrimento, mas eu não tinha coragem de enfrentar aquilo só.


Coloquei o celular no carregador e fiquei esperando o primeiro ponto de bateria. Como o telefone demorava a pegar carga, a aflição urgente amansou, apesar de a tensão não esvair: era muito sofrimento para se sentir confortável ouvindo-o. Mas reparando na uniformidade da altura dos gritos e percebendo um leve chiado acompanhando-os, como caixa de som estourada, percebi o exagero da minha reação: os gritos estavam dentro de uma televisão. O vizinho devia estar assistindo um filme de terror do tipo com sujeito de máscara e serra, cortando e triturando todo mundo. A raiva subiu à cabeça e fui bater à porta ao lado. Como da outra vez, a abertura da porta trouxe imediato silêncio.


“De novo a essa hora? O que foi dessa vez?” Abriu apenas a fresta necessária para me atender.


“O volume de sua TV. Ainda mais com esses filmes de gritaria.”


“Que TV? Que filme? Eu não tenho TV.”


“Eu não estou com paciência para gracinha. Mantenha essa porcaria desligada. Eu preciso dormir.”


“Você enlouqueceu.” Bateu a porta.


Filho de uma ronca e fuça: então o sujeito faz um barulhão daqueles, perturba meu sono e ainda tem o desplante de fazer um showzinho? Não ia ficar assim. No dia seguinte cedo fui à síndica registrar queixa.


“Bom dia, meu anjo. Há tanto tempo não lhe vejo. Conte-me as novidades.” Era a típica vizinha fuxiqueira.


“Eu queria registrar uma queixa sobre meu vizinho.”


“Oh, claro, claro. Qual vizinho? Somos todos vizinhos, docinho.” Eu odiava o tom condescendente.


“O do apartamento ao lado do meu. O sujeito inventou de fazer barulho de madrugada. Música alta, TV alta, essas coisas. Ele sempre foi silencioso, mas nos últimos dias mudou sem motivo nenhum. Tudo pela madrugada, três horas da manhã. E ontem quando fui reclamar, foi um estúpido comigo.”


“Desculpe, meu amor, não estou entendendo.” Por que o sorriso dela ficou amarelo? “Isso é algum tipo de brincadeira?”


“Como brincadeira? Eu estou fazendo uma reclamação formal contra o vizinho. Por que seria brincadeira?”


“Deve estar havendo algum mal entendido, então.” De repente ficou séria. “Não tem como a música ter vindo do apartamento ao lado do seu.”


“E por que não?”


“Porque está vazio. Há pouco mais de um mês. O morador faleceu.” Adotou um tom de cochicho: “na verdade, se jogou pela varanda. Eu mesma supervisionei as investigações da polícia. Um horror. Você não ficou sabendo de nada?”


Não... “Há pouco mais de um mês eu estava viajando. Não soube de nada.” A informação tirou meu chão. “Mas então quem está no apartamento? Um homem me atendeu de madrugada. Talvez algum irmão, alguém que ocupou o apartamento depois da morte.”


“Meu bem, não é possível. Eu acompanhei a família quando esvaziaram o apartamento. Levaram tudo, até aquela estante gigantesca de livros. Tiveram que serrar para passar na porta. Agora está à venda. O apartamento, não a estante.”


“Mas...”


“Se você quiser, podemos ir lá. A família deixou a chave comigo, para o caso de alguém vir olhar o apartamento. Mas nunca veio ninguém. Deve ser essa crise, né?”


Fomos. Quando a porta se abriu, o que a síndica havia contado se confirmou: o apartamento vazio, nas paredes ainda a diferença de cor entre os lugares onde houvera móveis encostados e os lugares livres. Na varanda, a rede de proteção rasgada de cima a baixo.


“Foi por ali que se jogou. Uma loucura, não?”


Voltei para casa em confusão. Eu tinha certeza de ter visto o vizinho nas duas noites. Não podia ser sonho. Não podia ser fantasia. Eu não estava tomando tanto remédio assim. O que havia acontecido?


Passei o resto do dia sem me livrar da imagem da rede rasgada. Aquele rasgo estaria visível pela minha varanda: era muito grande. Como pude não o perceber? Trabalhei mal, não consegui me concentrar na aula, perdi a parada do ônibus. Quando cheguei fui até minha varanda ver se dali enxergava o lugar onde a rede do vizinho havia sido rasgada. Mas o buraco não estava mais lá. Como era possível? Teriam trocado a rede durante o dia?


O apartamento se ascendeu com a mesma luz vermelha que eu havia visto no primeiro dia. Agora, porém, ao invés de um bruxuleio, o apartamento todo estava bem iluminado. Não havia mobília e o lugar lembrou a parte interna de um forno: era possível ver inclusive as distorções da luz por conta do calor. Do corredor, saiu de novo o homem que eu vira da primeira vez, mas agora, em proporções normais: nu, com postura de quem vai para uma briga. Sorriu irônico e entrou de volta para o quarto. Aquilo era uma cauda?


Então senti a impressão de alguém se reclinando por trás de mim, corpo também projetado para fora da varanda, o calor do hálito próximo a meu ouvido, quase me tocando e uma voz rouca em sussurro: “você quer saber para onde o vizinho foi?”


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