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Andréa de Dionísio

  • Foto do escritor: Cançado Thomé
    Cançado Thomé
  • 1 de nov. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 2 de nov. de 2020

Até cortar os próprios defeitos pode ser

perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito

que sustenta nosso edifício inteiro.

Clarice Lispector

Estava velha. E cansada. Já sentia os anos pesarem. Não digo que minha idade fosse tanta que não pudesse me aguentar – tantos por aí, pelo mundo, com idade a mais, seculares, e ainda mostrando viço, todos rijos, até cheios de pompa – mas estava difícil me aguentar. Uma gravidade que me empurrava para baixo, para o centro, me convidando a descansar. Um qualquer coisa de desgaste que a maresia vai fazendo nas entranhas da gente, reduzindo o aço dos ossos a hidróxidos – ferruginosos, vermelhos e porosos, corroídos e corrompidos. Uma deterioração que vai se espalhando, consumição em teia, dando-se ao mundo num pequeno vinco aqui, uma fissura ali. Rachaduras que vão se abrindo na nossa superfície, discretas, inocentes, mortais, que quando se percebem, são mesmo antigas. Estava difícil me aguentar.

Difícil mais pelo descuido, diga-se a verdade, que pela idade. Nunca tinha me cuidado. Nunca tinham me cuidado. Da recém-nascida, stand de lançamento, à dama das ruas da pequena aldeia escorreram-se anos despercebidos, décadas, que mal tendo vindo saíram à francesa pelas brechas do tempo. E não me dando conta do incessar do ponteiro, não fiz minha manutenção, não me apliquei os botoxis, os epóxis, as massas, os suplementos, as resinas, as fibras, as b12s para fixar, para repor o cálcio do meu cimento. Quando percebi, estava velha. E cansada. Concretamente degradada – para além do que deveria, antes do se esperava – porque o tempo não tinha esperado.

Até meu nome, carregava-o na fronte já quase todo apagado: do original ANDRÉA, sobraram o A e o N e mais a sombra manchada do resto. Sim, porque sou Andréa assim mesmo: sem I e com acento, na forma que se escrevia no meu tempo, antes da reforma. Porque se eu não me reformei, a língua se reformou e carregou o acento que insisto em ostentar. Insistia, já que hoje não tenho mais insistências – sou só desistências.

O mais engraçado é que transgredi pelo tempo envelhecendo quieta, inabalada, com meus vincos, superficiais, profundos e estruturais, mas sem qualquer oscilação. E acabei por me acabar justo quando se decidiu me renovar. No momento em que quiseram sarar-me as erosões dos dias, fendi.

As criaturas que criei no meu interno por todos esses anos, que alberguei em cada compartimento de meus órgãos, os seres animados com suas famílias médias, em classe e em tamanho, gerações se sucedendo, vindo e indo, diariamente, mas às vezes em definitivo, estes tais indivíduos, avaliando-me, concluíram por me renovar. E chamaram empresa, chamaram doutores, chamaram entendidos, especialistas especialmente especializados em tratar velhas senhoras, seus defeitos mais estruturais, experts em remoçar madames, deixando-as bonequinhas de porcelanas, jovenzinhas preparadas para enfrentar mais algumas décadas de corrosão. E houve anotação de responsabilidade, planejamento programático, projeto estruturado, orçamento estimado, equipe destacada, toda técnica, toda ciência, toda tecnologia da melhor engenharia, genética, civil e cibernética.

Mas no momento de executar a obra, lançaram-me às sobras. Sem oferecer-me apoios ou escoras, sem se prevenirem das minhas poucas forças para me sustentar – estava difícil me aguentar ­– escarafuncharam minhas pernas, rasparam minhas carnes corroídas, extraíram minhas massas, expuseram à nudez minhas veias de aço, minha armadura. Meus pilotis deploráveis, meus cambitos finos e varizentos, minhas perninhas alinhadas e enfraquecidas eram minha maior vergonha, maior imperfeição. Mas eram também o pouco que me suportava, que me permitia me aguentar. Meus defeitos e meus suportes, máculas e fundamentos. Cortados os defeitos, desmoronei.

Estabaquei-me, desequilibrada de mim, desapoiada de minha história. Acabei-me no chão como um pacote flácido, um pacote tímido, um pacote bêbado. Meu corpo estilhaçado, implodido de sua existência, esqueleto quebrado, osso a osso, viga e pilar, vedações, proteções, câmaras e revestimentos, antes arquitetonicamente compostos, agora sobrepostos, amontoados, mal amalgamados nos destroços que me tornei. Minha fortaleza convertida em ruína, tal como a fortaleza que nomeou a urbe que me acolheu, hoje apenas restos arruinados.

Na minha queda, levei comigo os que pude, os que descansavam tranquilos por dentro dos meus órgãos, seguindo suas rotinas elementares, hóspedes simbióticos do meu viver. Agarrei-os a mim, abraço tamanduá, último desespero de não querer des-ser sozinha. Aconcheguei-os comigo, ciumenta de os deixar prosseguir sem prestar continência diária a meus degraus, e os retive em mim, entre minhas membranas, para sempre ligados à flora de meus intestinos muito pouco delgados. Um arruinamento compartilhado, aumentando e diversificando os pesares dos pesos que nos sufocaram.

Hoje, restaram de mim lembranças: dos sobreviventes que haviam habitado meu corpo, dando-me amor até quando me dando abandono, mas também de tantos que vieram ver-me espatifada, humilhada aos pés do público. Lembranças dos curiosos que vieram tirar conclusões e cultivar boatos de minha vida, de minha história, inventando maledicências sobre minha carne concreta estendida, em busca de uma curtida qualquer, um compartilhamento qualquer de um compartimento qualquer da minha estrutura qualquer, qualquer coisa partida. Sou só recordações satisfeitas, contentes de si, de muitos anos que gestei esses pequenos seres que roeram minhas resistências enquanto tomavam café com cuscuz e atravessavam-me de cabos, mas principalmente dos poucos dias que, tombada na via pública, expus minhas entranhas aos holofotes salivantes dos lobos dos cliques, dos áudios, dos vídeos das câmeras de três, cinco, noventa lentes. De mim, mim mesma, de meu torso concreto fletido, minha armadura torcida, posto que estruturada, meus preenchimentos, revestimentos, meu teto desabado, do meu sobe e desce diário, de minhas formiguinhas, da convivência pacata, embora urbana, silenciosa, mesmo que sinuosa, nada mais há. No lugar onde fui, onde existi, onde fiz assento e morada, não hei mais. Há apenas um terreno limpo. Muro e terra planeada. E tanto a lamentar. Tantos a lamentar.

Tudo o que sou, ou que fui, está removido, sacado de minhas origens por mãos hábeis de heróis honrados, que se expuseram fuçando minhas vísceras, em busca do que sobrou dos que agarrei no ato final. E depois destes todos localizados, identificados, pranteados e tumulados, meu corpo desarruado e revolvido terminou removido, entulho inútil. Depois de escarafunchados os escombros expostos de meu escândalo, fui levada aos pedaços aos depósitos aos aterros aos soterros. Espedaçada, deixando de ser existência, una e completa, completando enfim, agora de forma intentada, planejada e ágil (em oposição à forma culposa, desleixada e lenta do primeiro turno do meu despedaçar), meu des-existir.

Hoje, no número 2405 encontra-se apenas a terra nua, baldio terreno de minha prosperidade e decadência. Amanhã, quem sabe, a especulação das caridosas almas imobiliárias traga para meu sítio um novo habitante, mais jovem, mais rijo, talvez protendido, nervurado, quem sabe sustentável, quiçá translúcido, para viver ele próprio seu apogeu e derrocada, ascensão e queda, construção e demolição. Mas que sua ruína seja menos ruidosa – mesmo após minhas dores, meus sofreres, meus e dos meus, não desejo mal aos que me sucederem, mesmo que suceda de suceder-me uma drogaria, para curar as dores dos que ficam mais alguns dias.

Mas se ainda posso pedir, e que desta vez escutem-me com a prudência que o respeito exige dos que tratam com velhas senhoras, façam-me uma lápide, singela, sincera. Assentem-na no jazigo no qual meu corpo se precipitou e gravem em epitáfio os dizeres: Aqui jaz Andréa, de Dionísio. Viveu em paz. Foi-se em circunstâncias que nos doem. Lembremo-nos dela, porém.

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Conto vencedor do Prêmio de Literatura Unifor 2020

Dedicado às vítimas do desabamento do Edifício Andréa em Fortaleza-CE em 15.10.2019.

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Para saber mais sobre o ocorrido no Edifício Andréa:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Desabamento_do_Edif%C3%ADcio_Andrea

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1 Comment


lucianassantiago
Nov 02, 2020

Perfeição, em todas as suas métricas e percepções!!!


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