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Casinha Branca

  • Foto do escritor: Cançado Thomé
    Cançado Thomé
  • 5 de jun. de 2019
  • 9 min de leitura

Atualizado: 3 de jul. de 2019


Estávamos estacionando e eu já sabia que era a casa dele. Quer dizer, a casa dos pais, porque ele, quase quarentão, terminando a segunda faculdade, ainda morava com a mamãe. É porque sou o caçula, não posso deixá-los sozinhos. São dois velhos.


Foi fácil reconhecer a casa. Na Rui Barbosa, movimentada como é, de residencial, só há edifícios. Todos as outras construções são comerciais. Não há prédio com área pequena, apenas dois andares e recuo generoso que não queira vender alguma coisa. Farmácias, cafés, supermercados, escolas, padarias, restaurantes, cursos, academias e tantos outros empreendimentos inovadores, up, high, extrem, a coqueluche da modernidade, compre agora com 50% de desconto.


No meio disso, da balbúrdia, da contemporaneidade, da urbes que pulsa e absorve e assimila e canibaliza, há a casa. A casa é a exceção que confirma a regra. Um sobradinho branco, muro baixo, janelas venezianas de madeira. A textura craquelenta das paredes e o jardim frontal são o charme provando que a casa é do milênio passado – tempos bons, quando Brasil 2000 era algo distante e vitorioso.


Parou o carro na avenida, antes da ciclofaixa, desceu, abriu as duas folhas do portãozinho de ferro, retornou e estacionou no pátio de grama, atrás do fusca azul. O ranger do portão trouxe sua mãe até a porta – uma senhora magra, alta, cabelos grisalhos presos em coque. Secava as mãos no avental. Robusta, não parecia em nada a velhinha que ele descrevia.


Desci do carro e vi uma sombra por trás da janela fechada no andar de cima. Dava pra ver os dedos apoiados entre as palhetas e o contorno da figura larga a nos observar. Tinha qualquer coisa de hostil. Deve ter percebido que eu o tinha visto, porque se afastou e fechou o caixilho, batendo-o com força. Procurei com os olhos meu namorado pra perguntar quem era, mas ele já ia mais à frente, em direção à sua mãe, indiferente ao movimento do andar de cima. Segui-o.


A mãe me cumprimentou afetuosa. Oh, meu anjo, que alegria lhe ter em nossa casa. Estava ansiosa pra lhe conhecer. Finho falou que você estuda literatura. Ele nunca namorou ninguém que tivesse ligação com artes. Sempre disse pra que procurasse alguém sensível.


Falante, contou que estudava cabala e astrologia. Disse que tinha o terceiro olho alerta e percebia a aura das pessoas. Falou que a vibração que vinha de mim era branca, com alguns toques amarelos e rosas. Disse que havia em mim uma força incontrolável que poderia brotar de meu coração – bastaria eu querer de verdade. Achei-a engraçada. Falante demais, mas engraçada. Chamar o Adolfo de Finho – e o tom com que falou – foi um toque de maternalismo infantilizador que confirmou minhas suspeitas: no fundo, ele nunca tinha se percebido adulto de verdade.

Tomávamos café com bolo feitos especialmente pra mim quando seu pai desceu. Um gordinho calvo, meio palmo mais baixo que a esposa, disse que estava colocando o cunhado pra dormir. Explicou que o tio de Adolfo tinha transtornos relacionados a fobias sociais e mania de perseguição. Quando não controlado, tinha alucinações e ficava irracional. Toda vez que vem uma pessoa nova aqui em casa, reage assim: se tranca no quarto e começa a imaginar as coisas mais horríveis. A gente tem que medicar e colocar pra dormir, senão pode até agredir a visita. Mas não se preocupe, é só no começo. Logo logo se acostuma com sua presença e então você vai descobrir como é um amor de criatura.


Parece que não se acostumou. Já há seis meses eu os frequentava e ainda não conhecia o tal tio. O mesmo ritual: à minha chegada, estava na janela observando, os dedos peludos entre as palhetas. Meu futuro sogro aparecia pouco depois dizendo tê-lo colocado pra dormir. E pedia que eu tivesse paciência que iria conhecer logo logo o ser mais dócil que eu viria a encontrar em toda minha vida. Era difícil imaginá-lo amável quando estava esmurrando a porta do quarto e gritando guturalmente como uma besta indomada. Mas me acostumei.


Naquela noite, eu acabei dormindo pela primeira vez na casinha branca. Tinha ido os visitar de moto e já pra mais de dez da noite a tempestade não cessava. Confesso que resisti – não queria dormir lá. Tinha medo: a casa desguarnecida, sem cerca elétrica (na verdade, quase sem muro), sem câmeras, sem grades nas janelas, sem vigias, sem nada, meu deus, eu tinha medo de estar ali até durante o dia. Imagine de noite. Adolfo disse que era besteira minha preocupação: há mais de cinquenta anos nós moramos aqui e nunca aconteceu nada. Os meninos protegem a casa.


Os meninos eram três pastores que moravam no quintal. À noite eram soltos e ficavam passeando ao redor do sobrado. Sempre achei estranho que não pulassem o muro e fugissem pra rua, mas me explicaram que eram bem adestrados: não iam pra rua por nenhuma hipótese, nem se incomodavam com quem passasse pela calçada. Fizesse o que se fizesse do lado de fora, permaneciam impassíveis. Mas se algum corajoso ousasse colocar pelo menos a mão pro lado de dentro, era provável que não restasse nem o corpo pra ser enviado ao IML. E como eram discretos, ao limite de invisíveis, mesmo assaltantes armados não escapavam. Tendo a chuva me mantido em cativeiro, o jeito foi confiar nos superpoderes dos meninos.


Arrumaram pra mim o quarto de hóspede, que, diferente de todos os outros, ficava no primeiro andar. Minha sogra veio me tranquilizar: olha, se você precisar que falemos com seus pais pra explicar que você dormiu aqui em um quarto separado, que aqui em casa a gente não permite essas liberdades de hoje em dia, a gente explica. Eles não têm com que se preocupar. Não sei se ela realmente supunha que eu e Adolfo nunca tínhamos transado ou se apenas não queria que o fizéssemos em sua casa. O que sei é que a resposta de meu pai quando enviei a mensagem dizendo que ia dormir ali foi: use camisinha.


Meu sono foi superficial e tenso: tinha a sensação de estar no meio da rua, suscetível a qualquer marginal que passasse. Acordei pelas três horas da manhã ouvindo um rosnado do lado de fora janela. A chuva havia parado. Eu ouvia os passos pesados dos cachorros na grama molhada do quintal – pareciam sitiar o quarto. Começaram a rugir mais forte e depois latiram – todos, agressivos. No susto, me encostei na cabeceira da cama agarrando o travesseiro, o raciocínio turvado pelo sono.


Então um se atirou contra a janela. Deve ter se erguido sobre as patas traseiras e lançado as dianteiras na esquadria. Era alto, uns dois metros, largo, violento. Logo outro também avançou ao seu lado – este era mais baixo. Bem mais baixo. O último também se ergueu, elevando o coro da invasão. Os três ficaram batendo e latindo. Pareciam querer arrombar. Pelo menos meia dúzia de palhetas arrebentou com as pancadas. O cão maior uivou, longo e ávido. Rosnou, latiu e urrou. Levantei e fui de costas em direção à saída do quarto. A janela balançava, o fecho sofrendo por resistir às investidas cada vez mais decididas. Tentei abrir a porta, mas a maçaneta lisa escorregava em minha mão suada. A angústia apertou com o barulho do trinco da janela se despedaçando.


Gritei. Virei. Segurei a maça com força. Consegui abrir. Saí olhando pra trás. Os animais invadindo o quarto. Havia um lobo. Gigante. Bati a porta em pânico. Corri. Desespero. Dei por mim nos braços de Adolfo. Ao pé da escada. Chorei. Me abraçou. Confusão. Me interrogou. O que houve? Os bichos, os meninos. Querem me estraçalhar. No quarto. São monstros. Eu não quero morrer.


Calma, meu amor, foi só um sonho – está tudo bem. Eu já estou aqui com você, ninguém vai lhe fazer mal. Nem os meninos, nem ninguém. Quebraram a janela. Latiam muito. Estão no quarto. Eu não quero mais voltar lá.


Depois que me acalmou, me convenceu a ir checar o quarto. A janela estava intacta: o trinco intocado, as folhas inteiras, as palhetas incólumes. Viu como tudo foi um sonho. Os meninos são dóceis com os de casa. E já conhecem seu cheiro.


Pelo sim, pelo não, não dormimos mais aquela noite. Ficamos na copa até o dia amanhecer, tomando chá de camomila, desconversando e fingindo que tinha sido só um sonho. Mal o sol saiu, eu já estava na moto a caminho de casa.


Custei a voltar. Minha sogra ligou se queixando. Meu bem, foi só um susto. Você não precisa ter medo de vir aqui. Nem precisa dormir de novo. Venha pra um brunch comigo. Você já faz parte do meu coração. Não vou lhe deixar escapar assim tão fácil. O tempo e o afeto diluíram o medo.


Quando cheguei, Adolfo me recebeu na porta. Nosso namoro andava estranho. O sexo cada vez mais fantástico, mas havia uma barreira que não nos permitia avançar. Qualquer coisa não falada, uma névoa que não permitia que nos víssemos por inteiro. Eu ainda esperava que a intimidade diluísse a bruma.


Me tomou pelo braço e me levou à copa, onde sua mãe havia preparado uma cerimônia pra me receber: incensos, taças de cristal, pratos de porcelana, Loreena McKennitt, rendas, pães, flores. Dez horas da manhã, mas as janelas fechadas, as cortinas pesadas e as velas coloridas produziam uma penumbra de mistério e misticismo.


À porta da copa estanquei. Inerte. Os três cachorros estavam deitados em torno da cadeira designada pra mim. A muito custo Adolfo me arrastou, apesar da sudorese e da taquicardia, até o tal lugar de honra – eu não conseguia pensar. Sentei. Os animais, entediados, sequer se moveram pra me olhar. Ficaram quietos, indiferentes. Até que Adolfo chamou: Raul, bênção. O maior se levantou, caminhou até mim, apoiou as patas dianteira sobre minha coxa, me encarou. Uma lágrima salgou minha boca. Mas então o bicho baixou a cabeça e ergueu a pata direita. Ficou imóvel nesta pose.


Ele vai ficar assim até que você bata sobre a pata erguida. Está pedindo sua bênção e lhe dizendo que você é quem está no comando. Deixei-o esperando. Por muito tempo. Não por querer testá-lo. Apenas porque estava em paralisia, com dificuldade até pra respirar. Com muita insistência e paciência, do cachorro e de Adolfo, terminei por dar a bênção que o animal esperava. Baixou a pata, encarou-me outra vez e voltou ao chão. Tive a impressão de que me mostrou os dentes pelo canto da boca antes de retomar o ar blasé de quando cheguei.


Adolfo, então, chamou: Rudy, bênção, e o segundo cachorro fez a mesma coisa. Quando chamou, Hati, bênção, eu já estava mais à vontade e abençoei o terceiro quase sem medo. O brunch que se seguiu teria sido agradável, se a presença dos animais não me impedisse de relaxar.


Apesar da bizarrice do retorno, voltei a frequentar a casinha branca, confiando na promessa de Adolfo de que nunca mais eu precisaria ver de novo os cachorros. Mesmo que amáveis. Mesmo que dóceis. Mesmo que entendessem que eu estava no comando. E a jura foi honrada: anos passaram e eu nunca mais estivera com os animais, apesar de saber que continuavam por ali.


Eu havia dormido na casa branca, no quarto do térreo, algumas vezes sem nenhum incidente. Apesar de ainda temer por estar vulnerável em nossa cidade cada vez mais violenta. Até aquela noite.


Aconteceu naquele dia da mesma forma como na primeira noite: a chuva, as pisadas, o rosnar, o medo, o animal agigantado contra a janela, o uivar, as batidas, o correr, a monstruosidade invadindo a alma e destravando os instintos mediúnicos, o trinco, o se afastar, o romper, o desespero, o fugir, a invasão, o correr alucinado estancado pelo namorado.


Mas desta vez, quando Adolfo me conteve em seus braços, a casa não estava escura, apagada, silenciosa como no primeiro pesadelo. Desta vez, a sala estava sem os móveis: no chão, velas formavam um emaranhado de caminhos. Em um lado estava a sua mãe, do outro seu pai. O ar enfumaçado por incenso e Loreena McKennitt.


Segurou firme meus ombros e conduziu-me até o centro das encruzilhadas de velas. Eu tremia. Já está na hora de darmos um novo passo no nosso relacionamento. Um passo muito especial. Beijou-me, subiu as escadas e desapareceu no segundo andar. Eu não conseguia me mover. De um lado e de outro, meus sogros pendulavam turíbulos que abundavam fumaça perfumada. Estavam em transe.


Pouco depois, Adolfo veio trazendo numa coleira um bicho: parecia um dos pastores, mas caminhava em pé. E era alto. As patas superiores tinham dedos, como humanos, peludos, unhas compridas. Ombros largos, a criatura era um monstro. Mas manso. Vinha de cabeça baixa, rosnando obediente. Quando estavam quase do meu lado, Adolfo me sorriu: esse é o tio Lican, que há muito eu queria que você conhecesse. Soltou a coleira do pescoço da criatura e ordenou: Lican, bênção.


O animal levantou a cabeça e soltou um de seus brados guturais, meio uivo, meio grito. Depois, baixou a cabeça, veio em minha direção e já bem próximo de mim ergueu a mão (ou pata, não sei) direita. Eu percebi que me urinava no mesmo momento que vi os dentes brilhantes que a criatura exibia me ameaçando. Eu sabia como dar a bênção (haviam me treinado), mas não era capaz de fazê-lo: o terror era mais forte.


E parece que Lican era menos paciente que seus irmãos cachorros. Por pouco tempo esperou: sem receber minha bênção, encarou-me e rosnou reclamando. Esse movimento demoveu-me do estupor. Acordei do transe e corri pra saída.


Corri por minha vida.


Saindo da casa, no jardim frontal, os meninos estavam postados pra impedir minha passagem. Dentes à mostra. Abri os braços gritando. Não sei como, meu movimento lançou uma onda de choque sobre os bichos, que voaram pros lados.


Atravessei o pátio em agonia e abri em furor o portão de ferro. Estava do lado de fora, na calçada, quando senti as unhas pontiagudas segurando-me pela cintura. Fechei os olhos, travei a mandíbula, cerrei os pulsos. Prendi a respiração.

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