Gravidade
- Cançado Thomé
- 28 de jul. de 2019
- 9 min de leitura
Atualizado: 1 de nov. de 2020
“A gravidade é um sentimento da natureza que faz nossos corpos dançarem no ar.” Li no insta um dia desses. Acho que era Clarisse. Amo Clarisse, ela tem coisas lindas. Confesso que não entendi direito, até o dia que a garrafa dançou. No ar. Foi pouco antes da separação. Quer dizer, poucos antes de ele me largar “porque precisava se encontrar”. Se encontrar num rabo enfeitiçado, que eu sei. Tinham me falado, mas não acreditei. Aí dancei, igual à garrafa. Ela no ar. Eu na vida.
Fizemos um almoço em casa. Domingo fresco, meio nublado, meio preguiçoso, meia dúzia de amigos, meia grade de cerveja. As que tínhamos comprado e as que os amigos tinham trazido estavam acabando, antes de acabar o almoço.
– Pega alguns cascos e compra na bodega da esquina. Acho que eles ficam até às duas hoje. Está quase fechando.
Nós temos um engradado de cerveja em casa. Quer dizer, eu tenho um engradado, porque ele foi embora e o engradado ficou. Então eu acho que agora eu o tenho só pra mim. Cabem vinte e quatro garrafas, mas deve ter quase cinquenta. Os cascos que não cabem ficam por cima dos outros, de boca pra baixo pra não acumular água. Sim, porque o engradado fica numa varandinha depois da área de serviço, no lugar feito pra estender roupa.
Peguei três garrafas e coloquei na sacola. Quando pegava a quarta – elas ficam todas meio bagunçadas – um casco rolou por cima dos outros. Girou em direção ao peitoril. Eu nunca havia prestado atenção: na varanda, o peitoril é bem baixinho, da altura de uma régua, bem alinhado com a caixa de cerveja. Acima do peitoril tem três barras de ferro na horizontal que fazem o resguardo de verdade. Nunca gostei desse esbarro na varanda. Entre o peitoril e a primeira barra tem um espaço muito largo, mais que suficiente pro Guto passar. Guto é nosso poodle. Quer dizer, o poodle dele, porque ele levou o cachorro. Gostava mais dele do que de mim.
Fato é que o esbarro me incomodava. Por mim, nem teria comprado o apartamento por conta desse defeito. Mas ele insistiu e eu comprei. Comprei pra agradar. Saquei FGTS e tudo. Agora eu tenho um apartamento com um buraco na varanda, mas não tenho nem o cachorro pra cair por ele nem o marido pra quem eu comprei.
Mas isso é outra história, eu estava falando da garrafa. A tal rolou por cima das outras, deslizando no engradado, passou pro peitoril e atravessou pra fora da varanda. Não que tenha ido rápido. Ela foi até bem preguiçosa, rolando lânguida. (Adoro a palavra lânguida – li num poema da Clarisse.) Mas quando eu percebi o quanto o engradado estava mal colocado, todo tendente a derrubar as garrafas, era tarde. Ela já estava descendo. Então eu entendi o negócio da gravidade: ela foi, apartamento abaixo, descendo os vinte e três andares, escorregando pelo ar, dançado a natureza: girou uma, duas, três vezes, e pá – se estilhaçou no chão, espalhando cacos pros lados.
O fundo do prédio, pra onde está a varanda de serviço, fica de frente pra um muro, depois do qual há um terreno baldio grande e então um parque. Praticamente ninguém passa naquela parte do prédio e para além não tem nada. Por isso, eu fui a única pessoa a assistir ao balé aéreo da garrafa: um, dois, três e pá. Uma coisa mesmo poética.
Na festa, também, ninguém percebeu. Aliás, ninguém nunca me percebeu. Eram amigos dele, não meus. Depois que ele foi embora, todos sumiram, os putos. Não tinha nem um mês que estavam na minha casa, comendo minha comida. A queimadura do meu braço ainda nem tinha sarado – no dia do almoço eu me queimei na travessa na qual eu assei umas costeletas de porco. Nada de mais, aquelas queimaduras que todo cozinheiro tem. Botei gelo e pasta de dente. Logo ia ficar bom. Então no dia que ele foi embora, eu procurei os amigos pra chorar. Nenhum me atendeu. A queimadura nem havia sarado e eles tinham desaparecido pelo esgoto. Umas baratas. Aposto que já sabiam que ele me traía. Foram comer minhas costelas pra rir da minha cara.
Sem ombro pra me consolar, resolvi afogar as mágoas na cerveja. Fui até a varanda pegar uns cascos e me lembrei da garrafa dançante. Encostei na barra de ferro, olhei lá pra baixo e sorri. Não, eu não pensei em pular. O abandono repentino me devastou, mas nem toda a tristeza me fez considerar essa possibilidade. Eu só queria um pouco de beleza no meio da dor – tipo flor que nasce no pântano (tem um filme lindo com esse nome, Flor do Pântano. Lembro de assistirmos juntos). Peguei uma garrafa e deixei-a rolar sobre minha mão. Ela deslizou rápida e escorregou pelo ar: girou uma, duas vezes, e pá.
Da primeira vez que caiu uma garrafa, era dia, que sempre é mais barulhento. Então eu a vi dançando no ar, mas não a ouvi se esparramando no chão. Naquela segunda vez foi diferente: no silêncio da noite, quase onze, o vidro uivou enquanto se abria no cimento. Um arrepio na minha espinha.
Saí, comprei algumas cervejas e chorei em suas companhias até mais tarde. Só eu e elas. Lá pelas tantas, nem sei direito que hora, fui no congelador pegar uma cerveja e ela havia estourado. Com os sentidos já meio debilitados e bebendo mais devagar – acho que eu já passava da sexta garrafa – acabei deixando-a no congelador mais tempo que devia. Vi que era hora de parar. Desci as garrafas restantes pra geladeira e levei a estourada pro tanque, pra deixá-la escorrer enquanto descongelava.
Foi quando me veio a dúvida: será que a garrafa cheia, mais pesada, cai diferente? Cai. Quando a soltei pela varanda ela dançou um, dois, três, quatro, cinco e fooom. O gelo de cerveja amorteceu o estilhaçar do vidro, fazendo-o se espalhar mais suave, mais leitoso. Coisa bonita de se ver. Fui me deitar sorrindo da beleza do vidro se estilhaçando, chorando do ridículo da minha vida se estilhaçando.
Dia seguinte, quando cheguei do trabalho, tinha um aviso no elevador: “prezados condôminos, recomendamos atentar para evitar a queda de objetos pelas janelas dos apartamentos, blá blá blá, acidente, blá, blá, blá, se ferir, blá, blá, blá, o estatuto, blá, blá blá, multa...” Cara chato, esse nosso síndico. Até parece. Devia se ocupar em controlar as despesas pra reduzir a taxa de condomínio em vez de ficar enchendo com avisozinho.
Ou cuidar pra prender aquele gato asqueroso. Pra isso não tem prezados condôminos. O antipático do síndico vivia pegando no pé de todo mundo, como uma madre superiora em colégio de freiras. Mas o infeliz tinha um gato que sempre fugia de casa (acho que o gato sabia destrancar portas) e ia pra outros apartamentos. E o danado era agressivo. Tal como o dono, se achava senhor do prédio. Uma vez, ele estava no nosso andar quando cheguei em casa com o Guto nos braços. O gato quis avançar sobre nós, todo arrepiado, com os dentes pra fora. Eu dei um chute que jogou o bicho longe, na parede. Saiu correndo. Acredita que o síndico fez uma reunião de condomínio pra reclamar que “meu bebê foi agredido”? Se cuidasse direito da peste, isso não teria acontecido.
Desde o dia do chute o gato nunca mais tinha aparecido em nosso andar. Nunca mais, até aquele dia – feliz coincidência. Talvez tenha se sentido à vontade pra voltar por não sentir mais o cheiro do Guto. Sei que saí do elevador amaldiçoando o síndico e lá estava ele, todo animado à frente da porta do apartamento. Sorri.
Com cuidado pra não espantar a fera, abri a porta e o deixei entrar. Com ele preso no apartamento, fui até a despensa e peguei uma garrafa de clorofórmio que o marido, quer dizer, o ex-marido tinha comprado pra fazer loló e cheirar com os amigos no carnaval. Às vezes eu tinha a impressão de ter casado com um adolescente. Molhei um pano com o líquido e chamei o gato com carinho. Não foi nem difícil, um pouco de dengo e ele já estava no meu colo apagado. Agressivo, mas ordinário. Deixei o bicho lá um tempo.
Tomei banho, fiz janta, assisti uma série, tomei vinho. Eu só sabia que não tinha matado o gato porque via a barriga dele subindo e descendo.
– Clorofórmio na dose errada mata na hora – ele dizia.
Qual a dose certa pra um gato?
Quando já ia pelo começo da madrugada, a cidade calma, as luzes apagadas, a rua em silêncio, peguei o animalzinho, tão descansado, tão inocente, coloquei no colo, cocei sua cabeça. Dormia profundo, parecia nem sentir o carinho que lhe fazia. Lembrei do aviso do síndico, do marido indo embora, “você tem que entender”, dos dentes do próprio gato ameaçando o Guto. Fui até a varanda da área de serviço e o fiz dançar: uma, duas, três, quatro vezes, e plof. O impacto foi débil, diferente da estridência do vidro. Fui dormir satisfeito.
Dia seguinte, quando ia saindo pra minha caminhada, o porteiro perguntou:
– Ficou sabendo do gato do síndico? Parece que pulou da janela e se estabacou no chão.
Murmurei qualquer que pena e segui meu caminho.
Dias passaram. Recebi uma ligação do ex: queria que eu ficasse com o Guto. Ia viajar, não tinha com quem deixar, uma conversa mole.
– Fico sim. Mas passe lá em casa e o deixe antes das seis. Não quero correr o risco de lhe encontrar.
– Você ficou com tanta mágoa assim?
Desliguei.
Cheguei em casa e o lindo estava lá. O cão, digo, porque o cachorro do ex-marido, graças a Deus, respeitou meu pedido – deixou o bebê mais cedo e se picou. Quando Guto me viu (há quanto tempo tinha ido embora?) quase passou mal de alegria. Pulou sobre mim, lambeu meu rosto, latiu excitado, abanou o rabo num pêndulo frenético. Tanta felicidade.
Eu também estava feliz em vê-lo de novo. Realmente o amava. Mas à medida que os dias foram passando – era uma viagem de quinze dias – a presença dele se transformou em angústia. Eu já havia me acostumado a ficar só. Tinha aprendido como é a vida de uma pessoa solitária. Estava começando a ter prazer nisso. Mas com o cachorro ali, tudo tinha cara de separação: éramos uma família – eu, ele e o Guto. Só dois era insuficiente.
No dia em que ele me ligou dizendo que tinha retornado que ia buscar o cão, eu dei uma desculpa esfarrapada e disse pra ir no dia seguinte.
– Hoje não vai dar.
– Mas eu posso ir na sua ausência e pego o Guto. Não precisa você se incomodar.
– Não vai dar. Eu mudei o segredo da porta de casa e avisei na portaria que você não mora mais lá. Só sobe com minha presença.
– Por que você mudou o segredo?
– A casa é minha, eu não tenho que lhe dar satisfação.
– Desculpa, mas é que...
Desliguei.
De noite, tomei umas cervejas antes de ir pra casa. Não estava bem. Cheguei e o Guto me recebeu com o afeto de sempre: carinhos, lambidas, latidos. Amor sincero. Tomei-o e abracei com força. Desculpe, meu amor, mas eu preciso fazer isso. Fui até a varanda da área de serviço e estendi os braços pra fora, segurando-o. Não dava mais pra sustentar aquela situação. Ele não tinha o direito de simplesmente ir embora, destruir minha vida, me desestabilizar, me deixar só. Se eu não podia ficar com ele, se não podia ficar com o Guto, se não podia ficar feliz, ele também não podia. Era loucura, era Medéia, mas não tinha outro caminho.
Então o Guto grunhiu e lambeu minha mão. Afetuoso. Entregue. Confiante. Perdi a coragem. Puxei-o de volta pra meu corpo. Abracei, beijei, me sentei agarrando-o no chão, chorando. Não, meu amor, não vou fazer nada com você. Você não tem culpa. Nenhum de nós dois tem culpa.
O frasco do clorofórmio ainda estava na mesa da sala. Coloquei um pouquinho num pano, com muito cuidado pra não exagerar na dose e desacordei o Guto. Coloquei-o pra dormir no escritório, por trás da estante de livros, onde era mais difícil achá-lo.
Liguei pro ex.
– Vem buscar seu cachorro agora.
– Por que você está falando assim? Está tudo bem?
– Agora.
Desliguei.
Meia hora e a campainha tocou. Entrou desconfiado.
– Está tudo bem?
Falso, se fazendo de preocupado comigo.
– Não, não está. Eu falei desde o primeiro dia que ia dar merda. Acabou dando.
– O que aconteceu?
– Aquela porcaria de buraco da varanda da área de serviço. Eu disse que era perigoso. Que ia dar problema. Que o Guto ia passar sem perceber.
– Não, não, não pode ser. O Guto já tinha acostumado. Ele nem andava na varanda.
– Eu também já tinha acostumado com um monte de coisa e você fudeu tudo.
– Não mistura as coisas.
– Não estou misturando nada. Você bagunçou tudo. Inclusive o juízo do Guto. Ele esqueceu dos caminhos da casa.
Eu ainda falava quando ele foi até a varanda procurar o Guto. Encostou o umbigo na barra de ferro mais alta e projetou o corpo pra fora, olhando lá pra baixo.
– Cadê ele? Eu não consigo ver – falou sem nem virar o rosto.
– Tenta um pouco mais de perto.
Um empurrãozinho e ele dançou. Um, dois, três e
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