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Saudades eterna

  • Foto do escritor: Cançado Thomé
    Cançado Thomé
  • 24 de mar. de 2019
  • 8 min de leitura

Atualizado: 20 de abr. de 2019

Hoje nós vamos visitar o cemitério. Disse sorrindo à mesa no café da manhã.


Minha prima Stephanie estava se esforçando pra provar que a cidade tinha sim uma rota turística interessante, mesmo que não tivesse praia. As pessoas acham que Nordeste é só praia, praia, praia, mas tem muito mais a ser visto. Então me levou pra parques, pontes, praças, balneários, restaurantes, teatros, galerias (de arte e de compras) e tudo mais que podia inventar. Mas cemitério?


As pessoas visitam cemitérios em Paris, em Nova York, em Londres, em Buenos Aires. Eu sei, mas é porque querem ver o túmulo de pessoas que consideram importantes – dizem que o túmulo da família Gassion-Piaf é um dos mais visitados do mundo. Mas qual personalidade visitar ali?, o conselheiro fundador da cidade?


Besta, nós vamos no cemitério porque eu preciso deixar umas flores no túmulo da mãe. Hoje completam anos que ela morreu e eu preciso ir lá pagar manutenção, ver se está tudo direito. Você vai comigo e aproveita pra conhecer o lugar. Tem umas lápides lindas, verdadeiras obras de arte.


A prima amava nossa cidade. Eu não a conhecia mais. Tinha me mudado com meus pais aos doze e nunca mais tinha voltado. Quantos anos, Solimar, que você não vem aqui? Hum, pra lá de vinte. Turista na minha cidade natal. Por que você nunca quis visitar a gente? Sei lá, Stephanie, no começo foi porque a passagem era muito cara e o pai não podia pagar. Depois foi perdendo sentido, a vida foi levando, acabou que o tempo passou e eu não vi.


Já no carro, ela avisa: hoje tem tempestade. Tempestade? Com esse céu limpo? O sol estalado iluminava um céu azul brilhante, sem sinal nem distante de chuva, sem cinza nem suave de poluição. Ih, John Snow, você não sabe de nada. Com esse calor, é certeza de trovoada mais tarde. Nem me fale de trovoada. Ainda me arrepio com a última que peguei. Nossa, falando em trovoada: noticiaram na TV seu voo de novo. Foi? Disseram o que? Não sei direito, porque só vi a chamada no jornal da manhã, não assisti a reportagem. Já tinha ido deixar o Bielzinho na escola.


Engraçado, coisa de cidade pequena: mais de dez dias depois e ainda era assunto na TV uma turbulência de voo. É verdade que foi uma turbulência e tanto: já chegando na cidade, uma tempestade titânica pegou o avião de supetão. A aeronave perdeu altitude de uma vez, jogando os passageiros pra cima e pra baixo. A senhora que estava a meu lado caiu na cadeira já com terço na mão e as saias molhadas. Um pouco mais a frente, um passageiro que devia ter pra lá de cento e cinquenta quilos caiu em cima do outro que estava ao lado dele. O garoto esmagado passou o resto do tempo gritando, meu braço, meu braço, meu braço. Deve ter quebrado. Uma aeromoça que passava pelo corredor se esparramou no chão, levantou com pressa e correu pro fundo da cabine gritando. Tenham calma. Perdi a conta de quantos vi vomitando.


Quando o piloto entrou no alto falante dizendo que estávamos atravessando uma tormenta forte e imprevista, que todos apertassem bem os cintos porque passaríamos por momentos difíceis, a gritaria foi geral. Nós vamos morrer. O avião chacoalhando intenso e claramente perdendo altitude. Você segura a minha mão? A senhora do terço tremia mais que a aeronave.


Chegamos, anuncia estacionando o carro ao lado de um muro alto amarelo – pintura velha, tinha manchas pretas e rachaduras no reboco. Descemos do carro, atravessamos o portão de barras de ferro com arabescos retorcidos e fechamento superior em arco. Trazia os dizeres: um novo caminho começa para os que aceitam a verdade.


O cemitério era mesmo bonitinho. Daqueles antigos, com túmulos altos, em mármore, em granito, com estátuas de anjos, vasos decorados com flores murchas e lápides decoradas com inscrições fúnebres amorosas. Algumas sepulturas eram tão ornadas e grandiosas, que pareciam carros alegóricos. Aqui e acolá, criptas imponentes. É estranho como a vaidade nos acompanha até após a morte.


O túmulo da tia era simplesinho. Numa área nova do cemitério, uns bons vinte minutos de caminhada depois da entrada, era do tipo cujo jazigo é todo enterrado. Acima da terra, só uma cruz com o nome dela, um vasinho e grama. Stephanie colocou as flores que levara, fez sinal da cruz e murmurou qualquer coisa. Não sei se rezava ou se conversava com a tia – ou as duas coisas.


Olha, você fique aí com a mãe um minuto que eu vou lá na administração pagar a anuidade. Eu vou com você. Eu vou sozinha. É um segundo. Mas eu prefiro ir. Melhor não. Se você for também, vão querer lhe vender plano funerário, aí vamos ficar bem meia hora pra nos livrarmos. Vou num pé, volto no outro. Nenhum zumbi vai sair da terra pra te pegar. Saiu rindo. Ficamos eu e os defuntos.


Reparei como o cemitério era grande. De onde estava, dava mais uns quinhentos metros até o fundo. Uma grande área plana, as várias cruzes alinhadas, alamedas pra circulação. Mais pra frente, túmulos de bocas abertas, famintos esperando por carne fresca. Ao fundo, quase rente ao muro, uma cajazeira vistosa, carregada de pontinhos amarelos.


Uma abelha passou por meus olhos: circulou minha cabeça, quis pousar em mim. Afastei-a com a mão. Detesto insetos. Todos eles. O bicho voou e foi pousar nas flores que a prima tinha deixado. Eram copos de leite, brancos com a espiga vermelha. Pousou sobre a borda da flor e foi caminhando. Satisfeita, parecia estar brincando. A criaturinha já estava quase toda dentro – eu só via um pontinho preto se movendo – quando foi acertada em cheio por uma gota grossa e certeira. Uma gota, que se seguiu de outra e uma terceira e mais tantas sucessivas, que encheram o copo de água, afogando a visitante.


Corri pra me proteger. Como o céu escureceu tão rápido? O abrigo mais próximo era um mausoléu localizado à borda da parte antiga do cemitério. Tinha uma cobertura que se projetava à frente da porta, uma espécie de varanda. Mesmo sendo o que havia mais próximo, ainda assim estava bem longe. Fui o mais rápido que pude, mas cheguei com o corpo coberto de água. Roupas encharcadas. A água invadiu o mundo.


Esperei por algum tempo, fazendo uso da hospitalidade do Sargento Eltério da Fonseca Pires e sua família. A morada eterna dos meus anfitriões era uma cripta cinza escuro, com grandes painéis de vidro. A porta à minha frente era um desses vitrais, formados por peças multicoloridas, compondo o desenho do que intuí ser a ressurreição dos mortos: uma gruta aberta, uma pedra ao lado e vários raios de luz saindo de dentro.


Fiquei em vão observando se minha prima vinha me resgatar na tumba da tia. Parecia que estávamos no cemitério só eu e os relâmpagos. Depois de algum tempo e tendo constatado que não havia como absorver mais água do que a que me cobria, decidi ir embora, com chuva, com tudo. Deixei meu abrigo rezando pela alma dos que ali me acolheram e fui procurar a administração.


Acontece que o cemitério era maior e mais confuso do que imaginei. As várias sessões pareciam todas iguais, as alamedas não eram lineares e as distâncias pareciam intransponíveis. Devo ter me perdido pelo menos por meia hora e tive a impressão de passar pelos mesmos lugares seguidas vezes. Quando finalmente consegui avistar o prédio que supus ser a administração – uma construção de paredes brancas e telhas vermelhas de barro – grande demais pra ser uma tumba, simples demais pra ser um mausoléu – corri pra lá. Na pressa, tropecei em uma raiz solta e cai arrastando o peito no chão de barro. Não cheguei a me machucar. Levantei e vi à minha frente uma tumba. Perdi o fôlego.


Alta, em mármore branco, bem polido. Devia ser nova – pelos veios da pedra ainda não tinham infiltrado a escuridão do desgaste ou os dissabores do tempo. Sobre o tampo, uma escultura dourada de uma naja em posição de ataque: rodilha armada, corpo elevado, costas abertas, boca com as presas à mostra – decifra-me ou devoro-te. E na lápide, sob inscrições de saudades eternas, o nome: Solimar de Pádua Castello Branco. * 16.03.1997 + 10.03.2019.


Mas Solimar de Pádua Castello Branco sou eu e 16.03.1997 é minha data de nascimento. E eu não morri. Estou aqui, correndo por esse cemitério encharcado, tentando encontrar minha prima. Há como ter existido uma pessoa com meu mesmo nome, que nasceu no meu mesmo dia e que acabou de morrer? Meus sobrenomes não são incomuns na nossa cidade, é verdade. Ainda assim. Só conheci uma outra pessoa que chamava Solimar em toda minha vida. E agora, esse defunto, Solimar com minha data de nascimento.


Um transformador próximo do prédio da administração explodiu, soltando uma nuvem elétrica ao seu redor. As brasas caíram no telhado da administração, mas logo foram extintas pela chuva. O poste ficou em chamas e a água que caía provocava estouros sucessivos. Corri pra longe, procurando a saída daquele lugar.


Acabei encontrando um portão secundário – baixo, simples, longe da imponência da entrada principal. Mas estava aberto e saí por ele. Do lado de fora, uma rua cheia de terrenos baldios. Nenhuma casa, nenhuma bodega, nenhuma pessoa. Procurei meu celular pra tentar falar com a prima, mas o coitado havia se apagado com o banho que tomava. Saí pra direção que supus ser nossa casa, quer dizer, a casa da Stephanie. Caminhei pelo que entendi ser quase uma hora em ruas desertas. Aquela era uma área residencial e as casas estavam todas fechadas. Nenhum ser vivente na rua.


Por conta de meu bom senso de orientação, e também por conta de uma boa dose de sorte, fui na direção correta. Avistei a ponte estaiada, o ícone da cidade. Dali, sabia chegar com tranquilidade à casa da prima: atravessava a ponte, seguia pela beira-rio, entrava na universidade, balão à direita, balão à esquerda, saía da universidade, mais cem, duzentos metros e estava na casa.


A beira-rio é uma bela avenida: três pistas de carro de um lado, um canteiro arborizado, mais três pistas na outra mão, uma ciclofaixa generosa, uma faixa pra corredores e um calçadão. Eu vinha por esta calçada, observando a mata ao meu lado. Por minhas contas, deveria ser algo entre dez horas e meio dia. Mas estava tudo tão escuro. O céu encoberto e a mata entre o calçadão e o rio – fechada de árvores, transversa de água, tomada de breu – parecia me observar desconfiada, recusando-se a aceitar que eu estivesse ali.


Quando eu ia pelo meio do caminho, saiu da mata um sujeito, alto, meio desengonçado, braços longos, com alguma coisa na mão. Ele estava com uma calça verde rajada e tinha uma camisa comprida azul clara, meio que bata, cobrindo os braços e descendo quase aos joelhos. Tinha na cabeça um boné vermelho. Pensei em correr na direção oposta, pensei em atravessar a rua, pensei em fugir pra dentro da mata.


Ouço um grito satisfeito: Solimar, que alegria! E antes que eu reagisse já estava bem na minha frente, braços abertos, sorriso largo. Me abraçou, perguntou como eu estava, o que tinha feito da vida, como tinha vindo parar ali. Tantos anos, tantos anos. E a água nos cobrindo. Senti saudades de você. Pegou com as duas mãos no meu rosto. Pai, que alegria. Deve ter percebido, minha confusão. Muita chuva pra conversinha. Você não lembra de mim, né? Eu sou Orion, seu melhor amigo antes de você ir embora.


Não lembrava mesmo. O nome até que despertou qualquer coisa afetiva, mas a trovoada não me permitia ficar ali. Não me permitia raciocinar. Saí dando desculpas, tinha que ir logo. Nos encontramos outra vez, ainda vou ficar alguns dias na cidade. Com certeza vamos nos ver de novo. Você não vai embora antes de nos vermos, pode apostar.


Saí quase correndo. Ao final da avenida, entrei na universidade: aquele campus aberto, arborizado. Caminhei em frente – não tinha erro: primeiro balão à direita, segundo à esquerda, a casa está logo em seguida. Andei uns bons minutos, mas a rotatória não apareceu. Nem os blocos da universidade, de um lado e de outro da avenida. Era uma pista deserta: asfalto no centro, mato dos lados e chuva nos céus. O piche acabou e a pista seguiu em piçarra, depois em terra e se afinou numa picada.


Eu não lembrava de ser assim. Dei meia volta, peguei caminho pra trás – eu devo ter passado da rótula sem vê-la. Muita chuva, muito escuro. Voltei mais uns metros e a pista em que eu ia se acabou. Nem mais picada, apenas capim alto, fechado, denso, até acima da cabeça. Virei-me e a pista de onde vim não estava mais lá. Olhei pro céu e a escuridão sorria, as nuvens escuras dançavam, a água não cessava.


Ouvi um grito: Solimar, que alegria!


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