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Portal

  • Foto do escritor: Cançado Thomé
    Cançado Thomé
  • 20 de fev. de 2019
  • 7 min de leitura

Atualizado: 20 de abr. de 2019

Subiu vacilante os quatro degraus da escada de alumínio. Não tinha medo de altura, mas estava tenso. Olhou para os pés firmados no patamar final – eram grandes, feios, com um tufo de pelos no dedão. Seu corpo em pouco tempo tinha se transformado numa justaposição de membros desproporcionais – um Frankenstein, feito de pedaços de cadáveres irregulares: pouca perna, muito braço, ombros finos, quadril largo. Você está crescendo, é assim. Vai ver como ficará um rapagão lindo.


Passou com cuidado da escada para o parapeito da varanda. Mesmo que o peitoril fosse largo, dando-lhe mais apoio que a escadinha, tremeu quando sentiu uma rajada de vento. Era o limiar, só mais um passo. Olhou embaixo a rua já quase sem movimento, um ou outro pedestre caminhando pelo calçadão, formiguinha perdida, retornando atrasada para toca. As barracas na faixa de areia já apagadas e na sequência o mar, se espalhando dali ao horizonte. Àquela hora não distinguia o verde forte formando a massa tranquila contida entre os quatro quebra-mares – até as águas estavam escuras. Inspirou tomando coragem.


“Ande, pule logo. O portal não vai ficar aberto para sempre.”


Olhou para o silfo, pairando em frente à varanda do apartamento. Estava mais nítido. Quando teve com ele o primeiro contato, ouvira-o como um cochicho. Depois uma voz cada dia mais clara, então uma imagem difusa, um espírito etéreo, uma criatura quase material e daí: já não tinha mais transparência, era um ser concreto, átomos reais, embora mantivesse um brilho vaporoso em torno de si. Reparou em suas asas, maiores que o resto do corpo, velozes como um colibri. Os olhos afastados, quase na lateral do rosto, amarelos e com pupilas em fenda vertical, dando um aspecto estranho. Os cílios longos e a sobrancelha eriçada faziam-no parecer maquiado.


“Vamos, o que você está esperando? Pule.”


“Como eu tenho certeza que o portal vai abrir?”


“Eu estou garantindo. Pule.”


“Não sei, Alexis. Você tem certeza que sou eu que eles procuram?, quero dizer, eu não tenho nada de especial. Não acredito que a rainha vá abrir o portal para alguém como eu.”


“Eu fui designado para encontrar o guardião. Eu já atravessei setenta universos diferentes. Encontrei seres de todos os tipos. Eu nunca vi em nenhum a energia que vejo em você. Nós precisamos de você. Pule.”


Fechou os olhos, inspirou fundo, apertou os lábios e expirou com força. Abriu os olhos e viu acima da avenida um emaranhado de feixes de luz multicoloridos. Intermitentes, pareciam tentar se estabilizar. Então Bifrost é assim? Olhou de novo para o silfo.


“Pule.”


Ouviu uma batida forte na porta.


“Ângelo Augusto, abra esse quarto.” A mãe gritava como se intentasse derrubar o apartamento.


Saltou do parapeito de volta ao piso da varanda. Destrancou o quarto. A mãe empurrou a porta súbita e foi direto para a caixa de som desligá-la.


“Para que essa música tão alta, Ângelo Augusto?”


Para você não ouvir enquanto eu converso com Alexis.


“E uma hora dessas? Parece que está doido. Os vizinhos vão reclamar. Você está ouvindo, Ângelo Augusto?”


Os olhos arregalados, as pupilas dilatadas, a voz uma escala mais alta que o natural, os movimentos violentos, o jeito irritadiço: ela estava tomando as bolinhas. Todas as vezes que o pai viajava, tomava-as. E o pai sempre viajava. Dizia que era para emagrecer, que não lhe faziam mal, que havia evidências científicas, que estava tudo sob controle e vários quês nos quais o psiquiatra convenientemente acreditava. E prescrevia.


“Você está ouvindo, Ângelo Augusto?, ou essa música de gente estranha já lhe deixou surdo?” Stravinsky era a música de gente estranha.


“Estou ouvindo, mamãe. Claro como o dia. Você já até desligou o som. Agora pode me dar um pouco de privacidade?”


“Olha menino, não fale assim comigo, que eu sou sua mãe. Me respeite. Deixa o seu pai voltar que nós vamos ter uma conversa, onde já se viu...” Saiu resmungando.


Fechou a porta e se voltou para a varanda. Alexis não estava mais lá. A mãe havia visto a escada?


***


A rainha tinha os olhos estranhos como o de Alexis, mas era bonita. Estava sobre um trono de escamas, ao alto de uma escadaria. O salão no qual o recepcionava parecia uma caverna, com teto esférico, ranhurado e com pontos de brilho estrelado. O piso era de nuvem. Coberta por um manto translúcido, quando se movia, a rainha emitia camadas de luz como uma nebulosa. Sorria triste e acolhedora.


“Ângelus, nós não temos muito tempo. Preste bastante atenção.” Falava por ruídos, fazendo um som que lembrava os velhos LPs do pai quando se arranhavam – como conseguia entender? “Eu sou a protetora destas terras. Mas meu tempo neste plano está findando: toda minha energia se dissipou e meu viço retornará para o universo.”


Para os lados do trono, abaixo da escadaria, havia soldados a postos. Tinham as mãos em forma de pinças e seguravam um objeto estranho, lembrando um cálice – armas, talvez. “Quando eu não estiver mais aqui, todo este plano estará sujeito a invasões. Só uma nova protetora é capaz de coordenar um exército de resistência. Até que ela nasça e se firme, precisamos de você.”


“Mas por que eu?”


“Você é especial. A energia que brota do seu cerne é de tal forma poderosa, que esfarela as forças de qualquer um contra quem você a direciona.”


“Vossa Majestade está enganada. Eu sou frágil.”


“Você é um dragão, Ângelus. Não conhece a força que tem. Ouça: o que me resta de forças eu usarei para abrir o portal para sua chegada. Você tem que fazer como o silfo lhe pedir. Se eu abrir o portal e você não vier, este mundo ficará sem protetora e será dizimado. Por favor, não nos abandone.”


Acordou em um susto: 6:45, estava atrasado. Vestiu-se com pressa e saiu de casa fugindo da insistência da empregada em lhe fazer comer pelo menos um sanduichinho. Viu a mãe dormindo torta no sofá – TV ligada, um pote de biscoitos na mão. Não teve paciência para esperar elevador – desceu os trinta andares correndo pelas escadas e voou baixo pelos três quarteirões até a escola. Atravessou o portão de entrada no instante que este era fechado e foi detido pelo bedel que o segurou pela mochila. “Imperador Augusto, mais uma vez atrasado? Desta vez vou ter que lhe reportar à direção.” O carrasco sorria: divertia-se com seu pavor. Ângelo argumentou que chegara ainda com o portão aberto, quase fechado, mas ainda um pouco aberto. “Explique-se ao coordenador”.


“Você é um dragão. Não precisa passar por isso, reaja”, aconselhou o silfo. O garoto olhou-o de relance, mas ignorou. À custa de muita argumentação e suborno conseguiu se livrar do censor. “Desta vez vou deixar passar, porque gosto de você. Mas que não se repita.”


Entrou em sala esbaforido e teve dificuldade em se concentrar por conta de Alexis. O silfo insistiu por todo o dia na importância de atravessar o portal. “Você viu a rainha. Ela está no limite das forças. Você não pode nos abandonar”. Era difícil ignorar o silfo, então vez por outra lhe pedia que parasse. Como era o único a vê-lo, os colegas olhavam-no estranho, sedimentando sua fama de esquisito. Já à saída, exasperou-se - “me deixe em paz” – e ao mesmo tempo trombou com um colega do último ano metido a marginal.


“O que você disse, moleque”, disse o colega.


“Não o deixe falar assim com você”, disse o silfo.


“Não era com você”, disse Ângelo.


“Não era o que?, você me empurrou, biruta.”


“Você é um dragão.”


“Me deixa em paz.”


Ângelo viu os fachos de luz intermitentes em torno de si. Estava no colégio, então tudo era luz e estava em seguida num milharal, mais luz e o colega deu-o um empurrão, mais luz e caiu sentado sobre nuvens, luz e levantou-se no milharal, luz e em suas mãos havia bolas de fogo, luz e o colega estava à sua frente, um grupo em algazarra gritando à volta dos dois “briga, briga, briga...”, luz, “você é um dragão, reaja, lute, pule”, luz, avançou sobre o colega com violência. O mundo se encheu de estrelas. Não houve mais luz.

Não soube ao certo quanto tempo passou desacordado: o bastante para o magote se dispersar, mas não para o bedel chegar. Quando se levantou, uma dor no olho e o uniforme com sangue; o bedel ao longe, vindo tomar satisfações. Procurou e não viu sua mochila – despojos de guerra. Correu do colégio antes de ser pego.


Foi à praia e entrou por um dos quebra-mares, pulando de pedra em pedra, até a ponta, quase um quilômetro dentro da água. Seu esconderijo particular. Alexis sentou do seu lado. “Me deixe em paz, já disse.” “Você não precisa passar por isso. Venha comigo e você vai descobrir sua força. Você viu o fogo em suas mãos. Se você aceitar, será muito mais que aquilo.”


Chorou. O silfo cerimonioso fez silêncio. Entre lágrimas, divisou sobre as nuvens a entrada da sala do trono – a rainha dentro, desfazendo-se em luz. Ao seu lado, viu pichado numa das pedras do quebra-mar: “a vida vale porque temos asas”. Foi para casa.


Entrou macio no apartamento. Não queria que vissem as marcas no seu rosto. Esgueirou-se até o quarto, trancou a porta, pegou a escada escondida debaixo da cama, postou-a ao lado do parapeito da varanda e subiu até o peitoril. Abriu largo os braços e prendeu a respiração.


“Pule!”


Tombou o corpo para frente. Sentiu a resistência do ar no rosto enquanto caia e teve pena de si.


Havia atravessado três ou sete andares – muito rápido para contar – e a rua embaixo desapareceu num clarão. Sentiu os braços sendo rasgados e viu escamas tomarem o lugar da pele. Olhou para o corpo que ia ficando vermelho, as pernas se encolhendo e as unhas dando lugar a garras pretas. As roupas se rasgaram, destruídas pelo crescimento do corpo, que ia tomando proporções titânicas. Viu uma cauda alongar-se em si e sentiu as costas se abrirem, como se lhe retirassem por ali todos os ossos de seu tronco. Doeu a ponto de cegá-lo por um instante.


Soltou um grito pela dor e também pelo que tinha abafando no peito. Mas não ouviu a própria voz: em seu lugar, algo como um rugido, um urro, um bramido estrondoso. Seu brado era grave, rouco, bestial. Abriu os olhos e viu o grito suceder-se por um jato de fogo, abrindo caminho à sua frente. A chama prazerosamente destrutiva, voluptuosamente mortal. Seu novo corpo despertando sensações luxuriosas, prazeres nunca sofridos.


Experimentou mover as asas: abriu-as prodigamente, deleitando-se com seus novos membros. Olhou para Alexis que se movia a seu lado e este piscou de volta, um sorriso malicioso. Bateu as asas com força e sentiu todo o corpo estremecer.


 Ouviu o barulho oco do impacto.


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