Não importa
- Cançado Thomé
- 23 de dez. de 2018
- 6 min de leitura
Atualizado: 20 de abr. de 2019
Sei lá, tanto faz, eu não me importo... Foi só o que respondi. Mas foi suficiente pra comoção geral.
O grande dia, querida, uma mulher nunca esquece o dia do seu casamento. A tia. Você está nervosa agora, mas quando o padre declarar marido e mulher, você vai se sentir nas nuvens. A prima. Eu sei que vocês já... você sabe, né?, mas na noite de núpcias é diferente. Vai por mim, a minha foi a melhor noite de todas... Minha irmã carola.
Nós já estávamos na antessala da noiva – um cubículo de dois por três na igreja que a família frequentava desde tempos perdidos. Segundo tia Pricila, nossos ancestrais recém-chegados ao Brasil ajudaram a construir a igreja. Bem que podiam ter feito uma antessala mais confortável. O espaço diminuto não ajudava, a inexistência de janela ou ar-condicionado também não cooperava com o clima sufocante da tarde. O pequeno ventilador estava desligado pra não desarrumar os penteados. Onze mulheres nervosas em seus vestidos longos – minha mãe, quatro tias, três primas, minha irmã, a empregada e eu – e um cabeleireiro.
Todas falavam ao mesmo tempo, um bando de gralhas. Então o cabeleireiro inventa de perguntar: você prefere uma coisa mais moderna, como uma trança espinha de peixe, assim pela lateral do ombro, ou você prefere mais romântico, sei lá, uma headband feita do próprio cabelo com uns arranjos floridos? Trouxe uns arranjos que ficam um arraso com esse seu rostinho de boneca.
Eu tinha vários motivos pra não me importar: primeiro, eu enjoei a cara dele desde que o vi – não sei se foi a baby-look cor de rosa, se foi a voz gasguita fanha ou se foi a afetação excessiva. O fato é que eu sentia náuseas toda vez que ele impunha sua presença desagradável sobre mim. Depois, eu nunca quis um casamento tradicional com toda aquela pompa. Foi necessidade natural da minha mãe: mas minha filha, toda mulher tem uma necessidade natural de casar na igreja, de véu e grinalda.
Aquele vestido me matava de calor, a maquiagem me fazia lembrar o Bozo. Estava cansada, tonta com tanto barulho, o salto já machucava meu dedo e eu sabia que estava atrasada – odeio me atrasar, mesmo que seja elegante pra uma noiva.
Minha mãe insistiu que eu terminasse de me arrumar na igreja. Nem que seja só o penteado, filhinha, é tradição. Como é que eu podia negar pedido tão doce da minha mamãezinha? No caminho, eu já de vestido, dentro da limusine, ainda estava com o cabelo de Madalena arrependida.
Passear de limusine pela cidade não foi má ideia. Cidade pequena, todos comentando. O pai mandou trazer o automóvel da capital, gente besta! Nas ruas estreitas de calçamento, eu chacoalhava dentro do carro como num liquidificador. Mas foi bom ver a inveja daquela gente. Diziam que eu me mudei pra cidade grande pra virar puta. Cinco anos na faculdade, mais dois de especialização e diziam que ganhei diploma de rapariga.
Quando o carro chegou, eu só queria entrar na igreja e concluir a tortura. Mas tinha que ir terminar a produção na antessala da noiva. Logo que entrei, dona Dulce perguntou: você quer tomar chá de cidreira ou prefere chá de capim santo? Você está muito nervosa.
De que me importava o que eu ia beber?, o que me acalmava de verdade era o sorriso de dona Dulce, nossa empregada. Mamãe pegou ela pra criar quando ainda era adolescente. Fazia os serviços da casa – lavava, passava, cozinhava, esfregava... nunca recebeu salário. Ela é quase parte da família, minha filha, tem sentido pagar salário pra quem é de casa? E dona Dulce ainda se sentia agradecida: não fosse sua mãe, eu ainda tava na roça. Você sabe o que é isso, menina? Já viu um cabo de enxada? Sua mãe é uma santa, me salvou daquela vida.
Dona Dulce foi quem nos criou, a mim e à minha irmã. Minha mãe estava sempre ocupada com algum evento de caridade da alta sociedade provinciana. Seu amor era higiênico – sem abraços ou beijos. Dona Dulce era diferente: contava estórias, corria conosco no quintal e sempre nos abraçava quando chovia forte. Meninas frouxas! Eu estou aqui. Quero ver se alguma chuva pega vocês. Seu sorriso foi meu único calmante naquele tormento.
Minha família era a tradição da cidade. Você é uma Tariq, minha querida, todas as Tariq fizeram primeira eucaristia na Igreja de Santo Afonso de Ligório. Você é uma Tariq, minha querida, todas as Tariq estudaram no Colégio Sêneca. Você é uma Tariq, minha querida, todas as Tariq, todas as Tariq, todas as Tariq... Quem dera ser da Silva.
Todas as Tariq queriam um casamento, planejavam o casamento, sonhavam com o casamento, sabiam que o casamento, acreditavam que o casamento, investiam pra que o casamento... E mais do que tudo, se importavam. Se importavam muito com cada detalhe. Lembro da tia Severina perguntar – você prefere casamento na primavera ou no outono?
O que me importava era casar em um período que não me atrapalhasse no escritório. O horror nos olhos das Tariq com essa minha resposta. E eu ia pagar pela blasfêmia pelo resto da vida, em cada agradável e ameno encontro de família. Todas me apontando pelos cantos, cochichando entre si e ensinando às novas Tariq: olha, ela escolheu a data do casamento por causa do trabalho, nem se importou com a estação.
Minha mãe ao ouvir tamanho insulto contra o mais belo dos sacramentos não conteve as lágrimas. Tia Severina a levou do quarto aos prantos pra tomar um copo d’água com açúcar. Mas não exagera no açúcar, minha querida, olha minha diabetes.
A dupla era um tanto engraçada: minha mãe sempre com vestidos coloridos e chapeis extravagantes. No dia do casamento, sua veste era lilás, coberta por pequenos paetês, milhões deles, causando sob o sol um brilho ofuscante. Na cabeça, tinha um chapéu com penas vermelhas e um laço indiscreto. Tia Severina, como sempre, vestido preto reto, até depois do joelho, sem nenhum ornamento, e uma manta de renda por cima dos ombros. O cabelo, titia sempre mantinha preso numa rodilha também preta. O cabelo deve estar domado como as paixões, minha filha.
E titia, com a voz meio rouca, seu ar sisudo e firmeza nas mãos, apoiava minha mãe enquanto ia dizendo: essa menina nunca teve jeito, desde que nasceu vi que era meio torta, acho até que é sáfica... Pronto: porque não achava o casamento a coisa mais importante da vida, virei sapatão.
Cabelo pronto, eu já podia ir pro altar. Mas ai tia Poliana sentou do meu lado e veio palestrar: meu bem, não dê ouvidos pras suas outras tias, elas estão muito velhas. Preste bem atenção no que vou dizer: aquele moço, que está te esperando no altar... Fiquei olhando tia Poliana e reparando o quanto ela mesma estava velha: tinha um ar de alegria mofada – sempre sorrindo pra o lado bom das coisas, mas com suspiros de quem viu a banda passar na janela. Suas olheiras estavam tão fortes que seu rosto ficou todo branco com o pó-de-arroz, mas as olheiras ainda saltavam, roxas, firmes. As pálpebras acumulavam tanta carne que em alguns momentos era-lhe difícil manter os olhos abertos. E notei uma linha de idade, que começava no canto do nariz e já se desenhava pra baixo do queixo, de um lado e do outro. Ela tinha se preocupado tanto com seus sapatos (tinha pés de gueixa e mania de sapatos), que havia se esquecido de retocar a pintura do cabelo. A raiz toda branca e titia ainda se achando jovem porque era moça. Terminou o sermão: você prefere que seu pai lhe leve à sua direita, como os ingleses, ou à esquerda, como os franceses? Achei que tinha virado automóvel.
A igreja cheirava jasmins, a flor das Tariq – o cheiro doce, de infância. Na fazenda da tia Carlota, onde passávamos as férias, havia jasmins de todos tipos: no jardim, bem cuidados, contornando a lavoura, livres, no meio da mata, selvagens. Eu caminhava pro altar e me sentia correndo pelas trilhas do milharal – não me pega, não me pega. Aquele frisson dos pássaros voltando pro ninho no final da tarde e o cheiro forte do café sendo torrado no galpão.
Quando subi no altar, minha irmã ainda perguntou: você quer que eu segure o buquê ou prefere ficar com ele durante a cerimônia? Depois perguntou, você prefere contar ou se esconder? Eu estava na gruta, aonde a gente ia pra brincar de casinha. A gruta tinha um altar. As carpas da lagoa que titia alimentava – quando estiverem bem gordas, fazemos uma pescaria. Eu tô vendo uma, tia, olha lá.
Uma sensação leve, de desprendimento. Os jasmins e a alegria inocente. Poder brincar o dia todo e dormir na rede da varanda ouvindo estórias. Eu era criança, estava de férias e ninguém podia me obrigar a nenhum compromisso. Só uma tradição: brincar sem parar.
Deitada no milharal com minha irmã, vendo as espigas altas na direção do céu. O medo de cobra misturado com a preguiça e a brincadeira com as nuvens. Olha, aquela é um coração! Não é não, sua boba, é uma maçã. A maçã do pecado.
Então o espantalho olha e diz: querida, por favor, responda: você o aceita, como seu legítimo esposo?
Eu respondi.
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